Você sabe o que é dor da fome?
Minhas memórias da infância guardam poucos momentos de alegria real e que foram de fato provocados por fato palpável.
Lembro que adorava assistir Spectroman e filmes de kung fu Shaolin na televisão preto e branco na companhia do meu avô. Adorava ir para a casa da minha avó pra ficar fuçando na maleta de ferramentas que ficava guardada sob o tanque de lavar roupa.
Quando meu avô faleceu, fomos morar lá para fazer companhia para a minha avó, a casa ficou muito triste sem ele.
Adorava ir a feira do Encantado, que é um bairro da periferia da Zona Norte do Rio de Janeiro. Naquela época, criança podia andar tranquila nas ruas, sem os perigos de hoje. Lembro também de junto com meus amigos de infância, tocar as campainhas e sair correndo. Que tempo bom!!!
Lembro também de ser zoado na escola particular, pois era um dos poucos moreninhos por lá. Chorava, não entendia do porque me chamarem de café com leite… Algum tempo depois, entendi.
Como nada dura para sempre, tudo mudou quando saímos da casa da minha avó para morar em um bairro vizinho. Passamos os anos mais difíceis das nossas vidas em um bairro chamado Piedade. Morava em uma ladeira, bem pertinho do Morro da Caixa D’Água.
Lembro de sempre inventar um jeito de fazer um dinheirinho pra poder ajudar minha mãe. Construía pipinhas de bambu e papel de seda que faziam muito sucesso com a garotada, mas quando se é realmente muito pobre, quando falta tudo, uma hora a gente acaba consumindo a verba para comprar o material pra fabricar e manter o ciclo das vendas. O angú e o arroz eram os pratos de quase todos os dias, também o macarrão e a carne seca. Uma vizinha nossa nos presenteava com um pouco de ensopado que sobrava, como sempre, delicioso. Era o que salvava a dieta pobre das crianças franzinas e anêmicas.
O fato que mais me marcou foi o dia em que sai de casa para ir para a escola pública em que estudei na infância. Não tinha café da manhã em casa e a esperança era chegar na escola e comer alguma coisa lá. Nesse dia para minha infelicidade, não tinha nem o Quick de morango e nem o almoço. Não lembro o motivo, só lembro da fome que aumentava e da fraqueza. Não conseguia prestar atenção na aula. Devia ter uns 12 anos e lembro de como o caminho para casa ficou distante. Subi a ladeira quase me arrastando sob o sol de meio dia a pino, a visão ficou embaçada e achei que não fosse conseguir chegar em casa. Assim que cheguei, desabei em choro nos braços da minha mãe. Minha barriga doía absurdamente, minha mãe até achou que havia acontecido algo de ruim no trajeto. Antes fosse!!! Comeria qualquer coisa naquele estado e, por mais que me esforce, não consigo lembrar o que a minha mãe me deu para comer.
Hoje, tenho o privilégio de poder dar o melhor que posso para meus filhos, mesmo sendo o básico, mesmo passando por dificuldades e contando centavos. A vida que posso proporcionar para meus filhos é infinitamente melhor do que a que eu tive na infância. Como me dói ver como essa geração não valoriza as facilidades que tem, a variedade de alimentos e a prosperidade. Me dói escutar reclamação de coisas extremamente banais. Tudo hoje é tão fácil, que o maior desafio é saber como transmitir o valor das coisas e do sacrifício que é feito para viver o que vivemos hoje.
Em pensar que a dor da fome e a extrema pobreza que vivi há 40 anos atrás ainda estão presentes ao nosso redor, serve de alerta, para que inculquemos em nossos filhos, que assim como minha vida mudou do nada na infância, nada dura para sempre, nem a prosperidade, nem a bonança.
Que possamos auxiliar as futuras gerações a serem fortes e resilientes diante das intempéries da vida. Que tenhamos saúde e disposição para que a única dor que elas tenham que lidar, seja a de coração partido, e não um estômago cortado pela fome.
https://recordtv.r7.com/jornal-da-record/series/serie-jr-a-dor-da-fome-29092018